O que o estudo da Etimologia revela sobre a nossa própria identidade
Azulejo e algodão são árabes. Carimbo e caçula, angolanos. Arara era brasileira antes mesmo de existir o Brasil. Vinagre é francês, caqui é japonês, besouro é espanhol e folclore é inglês. Se houve uma coisa que os alunos do 8º ano aprenderam em 2016 nas aulas da professora de Língua Portuguesa Juliana Jurisberg, foi que as palavras viajam.
O aprendizado se deu graças ao Projeto de Etimologia, que conduziu os 8os anos pela história das palavras desde suas origens, por continentes e oceanos e ao longo de milênios, até o português atualmente usado no País. Uma viagem repleta de descobertas curiosas, que fizeram os alunos repensar não apenas o idioma, mas a própria ideia de brasilidade. “Nossa língua é nossa identidade”, diz Juliana. “Estudar Etimologia, ao mesmo tempo que amplifica o repertório lexical, amplia a visão de mundo”.
De fato, saber de onde vêm as palavras é também um meio de compreender melhor a história e o legado cultural pelos quais um povo se define.
É compreender, por exemplo, que ser brasileiro no século XXI ainda é ser um pouco tupi. Afinal, a arara só ganhou esse nome porque era como nossos antepassados nativos a distinguiam das aves menores, chamadas de ará; para indicar aumentativo, repetiam a última sílaba, criando assim a arárá. “Uma das descobertas que mais surpreendem os alunos é que até o século XVII o tupi era a língua mais falada no Brasil, por indígenas e pelos portugueses”, diz Juliana. Não foi à toa que, em 1556, o jesuíta José de Anchieta escreveu sua Arte da Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil (publicada em 1595), contribuindo para que, até hoje, falemos em arara, sagui, caju, pipoca, catapora, mingau e outras palavras criadas pelos povos tupis.
Da mesma forma, somos ainda africanos, como comprovam as criações das línguas bantas, como o quimbundo angolano, que atravessaram o Atlântico com os escravos e permanecem até hoje entre nós. É o caso do carimbo (diminutivo ka + rimbu, “marca”) e do caçula (kasule, “último filho”), assim como do samba, do camundongo e da farofa.
E é claro que somos portugueses. Mas isso significa que também somos árabes, devido aos quase oito séculos de presença moura na Península Ibérica (VIII ao XV), que nos legaram o azulejo (az-zuléidj, “ladrilho vidrado e colorido”) e o algodão (al-qutun, “o cotão”, a penugem da semente do algodoeiro), além do açúcar, da laranja e do talco. Somos, enfim, um pouco de todos os povos que participaram, em maior ou menor grau, da formação de Portugal e, mais tarde, do Brasil.
Em última instância, o estudo da Etimologia revela não só o parentesco entre idiomas – português, espanhol, francês e italiano se parecem porque fazem parte da mesma família de línguas neolatinas, derivadas do latim falado no Império Romano e do grego antigo –, mas uma genealogia da humanidade com muito mais semelhanças entre culturas do que se imaginaria a princípio.
“A língua é algo vivo”, diz a assessora de Língua Portuguesa Denise Aparecida Masson. “Todas as estruturas linguísticas estão em constante transformação, criando vocábulos novos, tomando palavras emprestadas umas das outras, alterando a sua grafia e às vezes até o seu sentido original”. Segundo a assessora, desfazer a visão do idioma como algo estanque traz aprendizados importantes. Por um lado, previne preconceitos e radicalismos, como os que condenam, de modo absoluto, qualquer transgressão à norma culta ou o uso de palavras estrangeiras, em nome de certa “pureza linguística”.
Por outro lado, não nos deixa ignorar que as palavras que usamos refletem escolhas ideológicas. Se, hoje em dia, usamos termos como wi-fi, food truck e fashion ou anglicismos como deletar, futebol e xampu, é porque a influência americana sobre o Brasil a partir do século XX é tão grande quanto já foi a influência árabe sobre os povos ibéricos.
Além disso, diz Juliana Jurisberg, quanto mais se estuda a estrutura da língua, maior domínio se tem sobre ela, o que se reflete na produção dos textos dos alunos, da qualidade do repertório ao emprego da palavra precisa. “No Fundamental I, aprendemos a escrever. No Fundamental II, passamos a ter mais consciência sobre o que escrevemos”.
Maior consciência para, inclusive, criar palavras novas. A atividade foi a etapa final do Projeto de Etimologia. Juliana explica que o primeiro trimestre letivo do ano foi mais teórico, com o estudo de prefixos, sufixos e radicais gregos e latinos na formação de grande parte do nosso léxico. Caso da democracia, por exemplo, criada a partir da união dos radicais gregos demos (“povo”) e kratos (“poder”). Já o segundo e terceiro trimestres envolveram atividades mais práticas, como jogos e exercícios on-line que precisavam ser resolvidos com muita pesquisa em sites dedicados a estudos etimológicos.
O desafio final, diz Juliana, foi criar neologismos (do grego neo, “novo” + logo, “palavra”) para batizar objetos imaginários, tecnologias que solucionassem algum problema do mundo. “Os nomes tinham de ter algum fundamento etimológico”. E foi assim que os alunos do 8º ano criaram a “arrependemáquina” (máquina que permite consertar erros passados, voltando no tempo), o “flytuante móvel” (carro capaz de voar para escapar do trânsito), o “traduculus” (óculos que traduzem línguas estrangeiras) e o “autotênis”, que se amarra sozinho, entre outras invenções linguísticas.