Às vezes, uma entrevista foge do previsto e toma um rumo interessante. Há cerca de um mês, a Revista do Sabin pediu à psicóloga e terapeuta familiar Lidia Aratangy que comentasse um tema que vem preocupando pais e educadores: a superproteção dos filhos e seus efeitos na vida adulta. A julgar por reportagens, entrevistas e livros sobre o assunto – não raro trazendo conceitos como “hiperpaternidade” ou “pais-helicóptero” (assim chamados por “sobrevoarem” a vida dos filhos a todo momento, controlando tudo o que eles fazem) –, o excesso de zelo da atual geração de pais estaria gerando adultos incapazes de assumir responsabilidades, de lidar com frustrações e até de ingressar no mercado de trabalho (“pais-helicóptero estão criando filhos inempregáveis”, afirmou a psiquiatra canadense Marcia Sirota, em artigo republicado no Brasil).
Mas Lidia Aratangy prefere ver a questão sob outra perspectiva. Antes de condenar o pai que não deixa o filho correr riscos e enfrentar obstáculos, ela questiona se a vida moderna não estaria, de fato, oferecendo riscos e obstáculos demais. E, embora reconheça que a superproteção traz efeitos negativos, ela prefere olhar numa direção mais positiva, em que família e escola assumirão juntas não a culpa, mas a responsabilidade pelas próximas gerações.
Para alguns especialistas, estaríamos vivendo uma espécie de “epidemia” de pais superprotetores dos filhos. Você concorda com essa ideia?
Precisamos distinguir entre tipos de superproteção. Acho que existe uma epidemia, sim, mas de insegurança. Hoje, é muito difícil traçar uma linha divisória entre aquilo que é proteção, cuidado, e o que é superproteção. Houve um tempo em que essa linha era mais nítida. Você, então, percebia que havia pais neuróticos, meio paranoicos até. Mas, hoje, não dá para chamar de paranoia o que realmente é uma ansiedade com justificativa no real. Se é desse tipo de superproteção que estamos falando – de querer levar e buscar na festa, de querer saber onde está, de querer saber a que horas sai –, fica difícil acusar os pais de superprotetores. A vida, de fato, está assustadora. Agora, se estamos falando daquele outro lado, de querer controlar o namoro, de querer controlar com quem anda, etc., aí, sim, podemos falar de certo exagero.
E quanto aos pais que querem evitar a todo custo que seus filhos sofram frustrações?
Existe isso, sim. E não sei onde se inventou que frustração é desvio de rota. A frustração é parte da bagagem humana. A vida frustra. Os pais podem se esforçar ao máximo para dar aquela viagem, comprar aquele brinquedo, dar aquele tênis da moda, mas, dali a pouco, o garoto estará sofrendo porque a menina disse não, porque não quer saber dele. E aí os pais não podem fazer nada. A vida coloca frustrações contra as quais os pais não têm poder nenhum, nenhum! A criança criada na fantasia de que a frustração é uma coisa evitável vai ter dificuldade de tolerar algo que é natural da vida. Então, eu diria aos pais o seguinte: a tentativa de evitar a frustração dos filhos é, em primeiro lugar, inútil; depois, perniciosa.
Perniciosa porque os pais estariam criando pessoas despreparadas para a vida adulta?
Certamente, mas é preciso relativizar a responsabilidade dos pais. Existe hoje uma dificuldade em sair da adolescência e entrar na vida adulta. A adolescência vem se esparramando. Duas gerações atrás, a adolescência era uma fase de desenvolvimento que ia dos 13, 14 anos até os 16, 17 anos, e, depois, não tinha conversa: a gente ficava adulto. De repente, a adolescência começou a acuar a infância para um canto cada vez mais remoto – uma criatura de 9 anos já é púbere, pré-adolescente – e a se estender até os 35 anos, talvez. Quero dizer: por um lado, está mais complicado sair de casa, porque a vida está mais difícil mesmo; por outro, está mais fácil permanecer na casa dos pais. Os motivos para sair de casa que outras gerações tinham – ter uma vida mais livre com o namorado ou a namorada, ter um espaço só seu –, agora, são possíveis na casa dos pais. Então, os jovens estão mais refratários a enfrentar a vida adulta. Não só por conta das frustrações de que foram poupados – se é que foram –, mas porque está mais fácil ficar.
Queixa recorrente nas empresas é que os jovens, em geral, têm dificuldade de enfrentar responsabilidades e a competição do mercado de trabalho, porque foram superprotegidos. Você concorda com essa avaliação?
Em certa medida, todas as gerações enfrentam essa dificuldade. É sempre um choque entrar no universo competitivo do trabalho. Por isso, é preciso certo cuidado com essa visão. Na minha opinião, a grande batalha que vivemos hoje é entre competição e solidariedade. E, nesse sentido, muitas escolas estão cometendo um grande equívoco ao valorizar a competição.
Como assim?
A nossa espécie conseguiu chegar até aqui do jeito que é. Quero dizer, não temos chifres, garras, um maxilar poderoso, não temos a força de um urso, não somos velozes… Só chegamos até aqui porque, em algum momento, conseguimos superar a violência, a agressividade, para descobrir a solidariedade e passarmos a viver em grupo. Então, ouso dizer que o que salvou a espécie humana foi a solidariedade. E ouso dizer que o que talvez venha nos salvar do caos atual seja a redescoberta da solidariedade. A saída não é criar filhos competitivos para que sobrevivam à selva de pedra, mas gente que seja capaz de transformar a selva de pedra. E isso podemos conseguir com uma aliança entre escola e família. É por aí que vamos mudar o mundo. Quando se fala em superproteção, a gente logo pensa nos pais. Mas as escolas têm papel fundamental nessa questão.
Você enxerga essa preocupação nas escolas?
Minha impressão é que algumas escolas já estão se movimentando nessa direção de formação de equipes, de alimentar a solidariedade e a empatia. A empatia é a matéria-prima da solidariedade. Eu diria que os pais devem criar filhos solidários, e as escolas devem alimentar esse caminho. Vamos esquecer essa história de quem é a culpa. Vamos pelo lado da responsabilidade. Ao contrário da culpa, a descoberta da responsabilidade dá poder. A família, a escola, a sociedade, as três têm responsabilidade. Que cada uma faça a sua parte para formarmos pessoas solidárias.