Dignidade de expressão

Programa de Produção de Texto ensina alunos a ter e a defender as próprias ideias.

No último sábado de outubro, entre estandes com trabalhos artísticos, demonstrações de projetos científicos, livros à venda e outras atrações da Mostra Cultural Sabin, vez por outra a atenção dos visitantes era atraída por vozes um pouco mais elevadas, vindas do pátio principal do Colégio, proferindo discursos. Declamando poemas. Entoando canções de protesto.

Ora um grupo de alunas bradava contra o machismo e o feminicídio, ora outro grupo denunciava violações de direitos de refugiados. Aqui, uma equipe condenava a desigualdade social e a fome, com direito a citações poéticas: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos […] O bicho, meu Deus, era um homem” (O bicho, Manuel Bandeira). Ali, outra equipe clamava por mais acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência.

Os temas eram diversos, mas a origem de tais intervenções era a mesma: um projeto concebido pela equipe de Língua Portuguesa, que neste ano determinou como foco das aulas de Produção de Texto do 6º ao 9º ano a produção de manifestos. Como gênero textual, embora possa assumir formas variadas (cartas abertas, cartazes, leituras públicas, canções, dramatizações, etc.), o manifesto tem sempre uma natureza argumentativa, a função de sensibilizar e convencer alguém do valor de uma ideia. Até por isso, mais do que falar em público, o objetivo do projeto foi exercitar nos alunos uma competência que, segundo Denise Masson, assessora do Departamento de Língua Portuguesa, vem se tornando rara: a de ter – e defender – opiniões próprias sobre problemas da realidade, com base em fatos e bons argumentos.

“As novas gerações estão perdendo a capacidade de posicionamento autônomo. Elas têm acesso a mais informações do que nunca, mas preferem consumir um conteúdo voltado ao entretenimento, limitam-se a repetir os tais ‘influenciadores’, e isso gera um esvaziamento argumentativo”, diz a assessora. Segundo ela, o Colégio tem como missão “entregar cidadãos” – e cidadãos, no sentido mais rico do termo, são pessoas que se posicionam de maneira informada, têm não apenas liberdade de expressão, mas, nas palavras de Denise, “dignidade de expressão”.

A Mostra Cultural serviu, assim, de oportunidade para os alunos demonstrarem um pouco de sua capacidade de persuasão do público em favor de causas sociais – todas ligadas aos Direitos Humanos, tema que o Colégio tem adotado como norte de vários projetos. De certa forma, porém, a Mostra foi apenas a culminância de um movimento que vem de anos antes, quando o Sabin, com Denise à frente, reestruturou os objetivos e parâmetros do programa de Produção de Texto do Fundamental II e do Ensino Médio, com resultados que até hoje se fazem notar.

“Há cerca de cinco anos, implementamos um novo programa de Produção de Texto no Sabin, e muita coisa mudou”, diz Laércio Carrer, coordenador pedagógico do Ensino Fundamental II. Segundo Laércio, o Colégio buscou ressaltar o valor da leitura e da interpretação de textos como base da boa escrita, cuja qualidade – também foi preciso enfatizar – não dependeria da inclinação natural de ninguém, mas de técnica e treino. “Mudou a concepção que havia entre os alunos e as famílias de que escrever bem seria questão de talento e criatividade”.

“Fizemos várias reuniões com os pais para reafirmar isso”, recorda-se Denise. “O elemento artístico é menos importante – ele existe, claro, é de cada um, mas não estamos avaliando criatividade, e sim capacidade de expressão, que tem a ver com vocabulário e estrutura linguística”. Trata-se de um conjunto de conhecimentos que, como coloca Laércio, “pressupõe bons modelos, leituras variadas. E, principalmente, visão de mundo profunda e muita reflexão do aluno sobre o que ele escreve”.

Esse ponto é essencial porque toda técnica tem de estar a serviço do que se quer dizer. É um dos motivos pelos quais a equipe elaborou um programa mais focado no que os educadores chamam de tipologias do texto – narrativo, descritivo, argumentativo, etc. – do que nos chamados gêneros textuais – romance, conto, crônica, notícia, etc. De maneira simplificada, uma coisa é a função que o texto desempenha, outra é a forma que ele assume. E, para a assessora, faz sentido privilegiar a primeira, até porque um mesmo texto, seja de qual gênero for, pode cumprir várias funções, ora recorrendo a descrições, ora a narrativas, no conjunto, servindo como defesa de alguma posição do autor. “Se o aluno aprende a criar boas descrições, a narrar bem, a pensar em argumentos, é mais fácil depois ele adaptar essas técnicas à estrutura de um conto, ou de um poema, por exemplo”.

É assim que, do 6º ano em diante, os alunos adotam esse olhar para os textos que produzem. E como se faz isso? “Exercício. Muito exercício”, diz a assessora. “Tamanho não importa tanto, às vezes são só parágrafos; conte o que aconteceu numa viagem; descreva o que ganhou de presente”.

À medida que avançam no Fundamental II, porém, fica clara a ênfase crescente na tipologia argumentativa. Dos contos mais simples a relatos verídicos, a notícias sobre acontecimentos políticos atuais ou resenhas críticas, os alunos passam a analisar – e produzir – textos que incitam o engajamento e a tomada de posição do leitor. No fim do 9º ano, os alunos já estão produzindo seus primeiros textos dissertativos-argumentativos, cuja estrutura formal eles exercitarão com mais afinco e complexidade no Ensino Médio, como preparação para as redações do Enem e vestibulares, bem como para os textos que produzirão em sua futura vida acadêmica e profissional. Mas o fundamental é que eles já terão percebido a importância de formular
bem suas ideias e convencer as pessoas delas.

“Houve um avanço enorme da construção argumentativa desses meninos. Antes, tínhamos alunos que chegavam ao 9º ano ainda muito inocentes; hoje, eles já produzem documentários sobre Direitos Humanos”, diz Denise (no caso do 9º ano, aliás, os documentários foram seus manifestos). “E documentários nos quais eles entrevistaram, presencialmente, fontes que tivessem ligação real com o tema, não ‘famosos de internet’”.

Como mais um efeito positivo, ela nota como o trabalho fomentou nos alunos uma capacidade de discernimento de fontes confiáveis: “Nós os vemos comentando nos corredores que leram algo na página da ONU, ou assistiram a um vídeo da Unesco no YouTube”, diz a assessora, com orgulho.

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