O valor da pesquisa

Há generosidade na realização de uma pesquisa acadêmica. Pesquisadores buscam algo que, assim creem, contribuirá com o mundo. Uma nova máquina, um novo modelo de organização de processos, um novo ponto de vista. Neste ano, os professores João Paulo Streapco e Tércio Paparoto publicaram livros que são ampliações de suas dissertações de mestrado e tese de doutorado, respectivamente. Fruto de interesses particulares de seus autores, ambos oferecem reflexões de valor até para quem não compartilha da mesma afinidade pelos temas, com olhares que ultrapassam seus objetos de pesquisa. “É uma maneira de materializar e socializar o conhecimento”, diz Tércio.

Professor de História, João Paulo é autor de Cego é Aquele que Só Vê a Bola: o futebol paulistano e a formação de Corinthians, Palmeiras e São Paulo. Como indica o título – inspirado em frase do cronista Nelson Rodrigues, para quem até uma pelada seria de uma “complexidade shakespeariana” –, João Paulo subscreve à tese de que há bem mais no futebol do que o jogo em si.

O autor enxerga no futebol um vetor de transmissão de saberes e valores, especialmente numa São Paulo que, no início do século XX, crescia aceleradamente. O aparecimento de comunidades em torno do esporte (clubes e torcidas, atletas e dirigentes, jogadores profissionais e de várzea) servia a uma população de imigrantes que havia perdido seus referenciais identitários tradicionais e precisava de novas identidades. Ainda que essas identidades não fossem de todo verdadeiras.

Ele nota, por exemplo, que, embora os três maiores times paulistanos tenham origens semelhantes, o São Paulo teria cristalizado uma identidade vinculada à ideia de time da elite; o Palmeiras, à ascendência italiana; e o Corinthians, à de time dos pobres. Outros mitos apontados pelo professor seriam o de um esporte elitizado a princípio ou o de que a violência no futebol só apareceria com as torcidas organizadas. Como e por que se deu a construção ideológica de tais discursos é a contribuição de João Paulo, que revela interesses de controle econômico, social e político por trás de “tradições inventadas”.

Já o professor de Língua Portuguesa e Literatura Tércio Paparoto dedicou-se à obra do poeta angolano António Cardoso (1933–2006) em A Lição de Coisas de António Cardoso: uma poética para além da prisão. Também ele foi além das leituras tradicionais que se fazem do seu objeto.

Ao lado do já bastante estudado engajamento político de Cardoso – que militou pela independência de Angola e foi preso pelo regime português de 1961 a 1974 –, Tércio ressalta a “sensibilidade de um lirismo intenso e valioso” do poeta, focando-se em marcas de construção estético-formais, as quais, regra geral, em literaturas engajadas, “muitas vezes passam despercebidas, quando não ignoradas”.

Também aqui a pesquisa guarda valor até mesmo para quem não se interessa diretamente pelo poeta, ou por literatura africana. Ao dedicar parágrafos inteiros a investigar por que Cardoso usa uma expressão no plural ou conclui um verso com reticências, em um poema de poucas linhas, Tércio ilustra o poder da linguagem.

“Quanto menos versos [tem] um poema, maior sua complexidade”, escreve ele, já que a síntese nasceria da “concentração de significações”. Seu didatismo vem tanto de seu ofício quanto de uma crença no potencial da poesia: “Quando o jovem começa a escrever – os primeiros momentos de descoberta do lirismo amoroso –, ele tende a ir para a poesia. Isso mostra até uma possibilidade pedagógica do gênero”, diz Tércio.

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